O TROISGROS QUE MUDOU A COZINHA BRASILEIRA
Nascido em Roanne em 1956, Claude Troisgros carrega um dos nomes mais conhecidos e prestigiados da cozinha mundial. O seu pai Pierre e o seu tio Jean (morreu em 1981) foram, ao lado de Paul Bocuse e Michel Guérard, os nomes principais da Nouvelle Cuisine. O seu irmão Michel é hoje aclamado como um dos grandes chefes do mundo, continuando a tradição das três estrelas Michelin no restaurante da família. O caminho de Claude foi outro, mas nem por isso menos importante. A sua ida para o Brasil, país que adoptou como seu, acabaria por se revelar fundamental para a renovação da cozinha brasileira. Hoje, o seu pioneirismo é reconhecido por uma série de chefes brasileiros, com Alex Atala à cabeça, que começam a dar nas vistas a nível mundial, trazendo produtos tropicais (com especial destaque para os da Amazónia) para pratos de vanguarda. Vinte e cinco anos depois de abrir o seu restaurante no tranquilo bairro carioca do Jardim Botânico, Claude Troisgros é já um clássico, autor de receitas marcantes como a codorna FHC, ou seja, uma codorniz recheada com farofa com molho de jabuticaba (uma fruta tropical) com que homenageou um dos seus muitos e ilustres clientes, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Um prato que é um bom exemplo da maneira como ele cozinha, partindo de uma sólida base técnica, de raiz francesa, para a exibição dos sabores brasileiros. Esta entrevista foi-nos concedida durante a semana gastronómica que Claude Troisgros fez no hotel Lapa Palace, em Lisboa, no âmbito da iniciativa Encontro com Grandes Chefes do Mundo. E que acabaria por ser também um momento de encontro familiar, já que o seu filho Thomas, também cozinheiro, veio com ele e o pai, Pierre, juntou-se a eles vindo de França. Uma ocasião feliz para uma família que transmite uma simpatia e uma abertura de espírito notáveis, de quem vê o mundo como a sua casa, sempre com curiosidade para conhecer outros modos de viver e de cozinhar.
É difícil ser-se herdeiros de uma família tão ilustre?
Realmente, dá-nos uma certa responsabilidade. O meu avô Jean-Baptiste e a minha avó Marie abriram o restaurante em 1930. O meu avô foi um revolucionário, na altura, servindo em pratos e não em travessas. Falava aos filhos (Pierre e Jean): “vocês têm que ser responsáveis pelas vossas receitas do principio até ao fim”. E ele começaram a empratar tudo. Como ele odiava pão, começou a colocar aquelas colheres de sopa rasas para se poder provar o molho sem precisar do pão. Ele era borgonhês e muito ligado ao vinho e começou a servir Beaujolais com peixe…. A minha avó tinha receitas inacreditáveis para a época como linguado com banana, muito exótico e caro porque a banana era cara e difícil de encontrar. Eu nasci nesse meio, quando o meu pai e meu tio participaram na revolução da Nouvelle Cuisine…
Como é que viveu essa época?
Moravamos dentro do hotel, do restaurante, e havia uma grande amizade com Paul Bocuse (até hoje, Pierre Troisgros telefona quase todos os dias a Bocuse), Roger Vergé, Michel Guérard, Alain Chapel, enfim, os grandes nomes da cozinha eram visitas frequentes lá de casa. Tinha 10, 12 anos e acompanhava esse ambiente de alta cozinha. Foi uma lavagem de cérebro positiva para mim e o meu irmão Michel (dois anos mais novo).
E sempre quis seguir a tradição da família?
Sempre. Nem tive muita escolha, porque logo aos seis anos assinei um contrato para ser aprendiz no Paul Bocuse assim que tivesse idade. Era uma brincadeira, é claro, com um grande amigo da minha família, mas a verdade é que aos 16 anos fui para lá aprender. Foi o meu primeiro restaurante. Mas o meu pai quis que eu e o meu irmão vivêssemos diversas experiências antes de nos fixarmos em Roanne, Depois do Bocuse, estive com Joe Rostang, (pai de Michel), no Taillevent (em Paris), em Londres, na Alemanha, na Irlanda, Passávamos lá uns tempo e depois voltávamos sempre uns meses para casa, porque ia-mos ser os herdeiros.
Quando é que essa fase se encerrou?
Em 1978, voltei para casa para ficar e continuar a tradição. O meu irmão dois anos depois. Só que aconteceu um momento crucial na minha vida: em 1979 o meu pai entrou na cozinha e disse que o Gaston Lenôtre estava a abrir o Pré-Catelan num hotel do Rio de Janeiro (o Rio Palace) e precisava de um chefe para um contrato de dois anos. Eu disse logo que adoraria conhecer o Brasil, Copacabana, mulatas, samba. Tinha 22 anos, maravilha. Assinei o contrato e nunca mais voltei, apaixonei-me pelo Brasil, por uma brasileira, a minha vida mudou completamente.
Mas foi fazer cozinha francesa?
Fui. Era o que eles queriam, na altura, no Rio. Aliás, cheguei ao mesmo tempo do Laurent Suedeau, que ia mandado pelo Paul Bocuse, para o restaurante do Méridien, onde ele era consultor. Não podíamos criar a nossa cozinha, só executavamos as receitas dos chefes para que trabalhávamos. Alguns meses depois, liguei para o Lenôtre e disse que o restaurante estava a dar muito certo mas que o caminho era errado porque não era isso que eu aprendi, que o meu pai me ensinara. A gente não estava trabalhando com produtos frescos, com produtos da estação, era tudo congelado, importado, enlatado. Ele me respondeu que ele estava na França e eu no Brasil, que tinha confiança em mim e para eu fazer o que bem entendesse. E o mesmo aconteceu entre o Laurent e o Bocuse. Nós começámos então a criar uma cozinha personalizada, usando produtos da estação, do mercado, que eram produtos tropicais, como maracujá e outras frutas. Comecei a incorporar os produtos brasileiros na cozinha francesa, sem saber muito bem na realidade o que estava a fazer. Mas criámos uma nova era na cozinha brasileira.
Os brasileiros, que estavam à espera de cozinha francesa, reagiram bem?
Nem sempre e eu tive uma fase difícil, porque o paladar dos brasileiros não era muito bem formado. Havia um pequeno grupo de pessoas que viajava e que conhecia uma culinária mais moderna. Mas durante dez anos sofri muito, com os clientes a pedirem arroz com todos os pratos. Foi uma fase difícil, mas importante.
O nome Troisgros não o ajudou quando decidiu abrir o seu próprio restaurante?
A maioria das pessoas no Brasil não dava importância ao nome Troisgros, só os mais viajados. Abri um pequeno restaurante no Leblon, o Roanne, tinha pouco dinheiro e o meu pai não me quis ajudar (ele queria era que eu voltasse para casa...) e fez muito bem porque eu tive que me virar como podia. Era 30 m2, com 18 banquinhos sem encosto. Nos dois primeiros dias não tivemos ninguém, mas no terceiro dia entrou um cliente sozinho que comeu e gostou muito. Me deixou o seu cartão, disse que estava muito bom, muito obrigado, vou te mandar muitos clientes. Eu achei que era daquelas coisas que se diziam, mas que não tinha significado. Só que conversa vai, conversa vem, ele viu o nome Roanne e perguntou se eu era de lá dizendo que ia lá muito, por causa de um restaurante Troisgros que adorava, etc. Esse primeiro cliente era uma pessoa que na altura era o manda-chuva da gastronomia carioca, o Boni, director da Rede Globo, um grande gourmet e muito influente. Ele realmente ele começou a mandar muita gente da Globo. Um ano depois eu tinha dinheiro para abrir o restaurante que tenho até hoje que se chamava Claude Troisgros e agora se chama Olympe, o nome da minha mãe.
E nunca pensou em voltar para Roanne?
O meu irmão voltou em 1981 e ele toma conta da casa, com muito sucesso por isso estou tranquilo nesse aspecto. Mas houve um época, em 1991, em que havia muita violência e sequestros no Brasil e eu, com medo do que poderia acontecer à minha família, decidi voltar para Roanne. Deixei o restaurante aberto com o meu pessoal. O meu pai adorou ver os dois irmãos juntos, mas o Michel já estava dez anos à minha frente e eu senti muita saudade do Brasil. Não estava na mesma sintonia. Tive a proposta de abrir em restaurante em Nova Iorque e fiquei lá seis anos. Fui consultor, deu certo, mas um dos sócios brasileiros decidiu vender e eu voltei ao Rio.
Não sente que, por estar longe de França e da Europa, está a ser ultrapassado em termos técnicos?
Sinto que no Brasil posso estar a ser ultrapassado em termos técnicos, mas viajo muito, dou consultoria em Miami ), num restaurante de alto padrão. (o Blue Door, desenhado por Philippe Starck, que tem Madonna como um dos sócios), vou também ao Japão (os Troisgros têm lá uma loja gourmet desde os anos 60), a Singapura, ou seja, viajo sempre que posso, às vezes até sem cobrar, porque aprendo muito. Se não viajar, fico desfasado.
Acha que a base técnica foi o mais importante na sua carreira?
A base técnica é indispensável. Tirando os orientais, a base é francesa, mesmo nos novos espanhóis. Como na música ou na pintura você tem que ter uma base clássica, senão o que vai criar é uma confusão generalizada. Mas não se aprende só em França. Aliás, o meu filho Thomas, tal como o filho de Bocuse, foi para os EUA, para o CIA (Culinary Institute of América, hoje em dia, uma das mais prestigiadas escolas de cozinha do mundo), por uma razão: tecnicamente falando as escolas francesas são melhores, mas as americanas, sobretudo o CIA, tem uma abertura de espírito maior do que as francesas. Em França, fala-se só de cozinha francesa. Nem sequer da italiana.
Como é que alguém que acompanhou tão de perto o movimento da Nouvelle Cuisine vê a cozinha actual?
A Nouvelle Cuisine foi a maior mudança que a cozinha teve. Veio depois a fusão, que começou nos EUA e se generalizou, mas agora o Ferran Adrià lançou uma nova era, principalmente com uma técnica muito forte, muito sólida. É a evolução do que aconteceu há 30 anos atrás. E vai aparecer uma outra, vai evoluir ainda mais, é só o início de uma nova culinária.
Então para si o Adrià não é apenas uma moda?
Não, não é passageiro, é muito forte, embora, é claro, como aconteceu com a fusão nos anos 90, vai evoluir muito também. Mas vão sempre aparecer alguns chefes que vão fazer umas misturas que não têm nada a ver uma coisa com a outra. Mas o Adriá e outros chefes, como o meu irmão ou o Pierre Gagnaire, por exemplo, vão certamente continuar a evolução.
E no Brasil?
Tecnicamente, os cozinheiros evoluiram muito, o paladar do cliente brasileiro evoluiu muito, as pessoas estão muito ligadas a gastronomia, fazem aulas. Vejo o início de uma grande mudança na gastronomia brasileira, com a valorização dos produtos do país, como, por exemplo, os da Amazónia.
A qualidade dos novos chefes brasileiros é boa?
Há dez anos atrás só tinha franceses, italianos, alemães. Agora tem uma nova era com o Alex Atala, a Flávia Quaresma, a Carla Pernambuco. E vai crescer. As escolas de cozinha, sobretudo no Rio e S. Paulo, estão também melhorando a qualidade das equipas. E agora há bons produtos para trabalhar. Quando cheguei, não havia quase nada em produtos de qualidade. Tomate, cenoura, courgette, beringela, cebola e acabou. Agora tem espargos, foie gras, ervas aromáticas, eu sei lá. Mesmo nos produtos daqui, como a fruta tropical, há mais variedade e qualidade. E toda a gente se preocupa com a qualidade do produto. Portanto, estamos no início de uma grande evolução.
Não há muitas rivalidades entre os chefes brasileiros?
Nunca senti. Talvez por ser um país de imigrantes, sempre me aceitaram muito bem e tenho entre eles muitos amigos. Acho que tem a ver com o espírito brasileiro. Os chefes brasileiros são como uma grande família.
Já conhecia Portugal?
Esta é a terceira vez que venho. A primeira foi porque o Miguel Reino, que há 25 anos trabalhou uns meses comigo no Rio, convidou-me para o seu casamento em Portugal. Lembro-me de ir ao restaurante dele, Aqui Há Peixe, para almoçar e foi inesquecível. Óptimo peixe e mariscos, tudo com uma cozinha muito simples, mas muito bom. No ano passado, o meu pai recebeu a Legião de Honra e quando eu quis ir a França, já não havia passagens. Mas havia vindo por Lisboa e eu vim com a minha mulher. Aproveitámos para tirar uns dias, alugar um carro e ir até Évora, meio na aventura, sem nada planeado. Foi uma surpresa, porque é uma região lindíssima, comida muito boa, restaurantes pequeninhos mas maravilhosos, vinho bom…E aí eu comecei a compreender melhor porque o brasileiro é tão feliz. É porque o português é um povo feliz, acolhedor, sorridente. Eu me apaixonei por Portugal.
E esta experiência agora a trabalhar no Lapa Palace?
Claro que em trabalho não é a mesma coisa, mas este hotel é fantástico, de alto luxo, com uma clientela mais sofisticada. Como vim também fazer umas filmagens para o meu programa no GNT (canal brasileiro de televisão por cabo) isso deu-me possibilidade de conhecer algumas coisas que eu queria, como o queijo de Azeitão. Fomos lá na Quinta do Anjo, com o Sr. Fortuna, uma grande personalidade e um queijo sensacional. É, juntamente com o queijo da Serra da Estrela, um dos grandes queijos do mundo. Fomos também ao mercado de peixe em Setúbal e conheci também umas coisas que nunca tinha visto como choco. Tem na França, mas não é muito normal, tem que se fazer um pedido especial. Fiz até uma receita com a tinta do choco. Comprei percebes, que acho muito interessantes. Tem também na França mas não usamos muito. E enguias vivas, raias, peixe muito fresco. Gostei muito daquelas portuguesas que vendem o peixe, cortam o peixe, limpam, falam, riem. É um ambiente fantástico. Fui ainda à Tasquinha da Adelaide. A Adelaide é uma graça de pessoa e fiz com ela um prato tradicional, o bacalhau espiritual.
Quais são os próximos projectos?
Estou abrindo no Rio um novo restaurante, onde era o Boteco 66, que reformulei para o 66 Bistrot, com o meu filho Thomas e a minha prima Natalie, com uma base de cozinha francesa, com muitos assados, peixe ao sal, etc. E vamos recordar um serviço que desapareceu, com a finalização dos pratos na sala, os flambées, o lado espectacular. Ou seja, a cozinha pré-Nouvelle Cuisine.
Aos 50 anos, não está cansado de cozinhar?
Não, não. Ao contrário. Agora, no Brasil, este estilo de cozinha está a crescer. Nos últimos cinco anos, muitos chefes avançaram um pouco mais nesta cozinha, digamos, “franco-brasileira” e vai crescer ainda mais, o que para mim é óptimo. É um estímulo vir gente mais nova fazer este tipo de cozinha.
O seu nome vai ficar mais ligado a França ou ao Brasil?
Acho que claramente ao Brasil. Eu sinto-me sobretudo um divulgador da cozinha brasileira e dos seus produtos